Não consigo, nem posso, por mais que a minha vontade queira, pintar um retrato desta caminhada que, desde então, foi.
E, por estranho que pareça, não existe no mercado qualquer tinta que descreva e relate o que aconteceu, que perpetue o que se conquistou, que tonalize a LIBERDADE. Daí, a impossibilidade de ser tão fácil.
Por isso, escolho as palavras, as eternas palavras, para cumprirem o seu dever de falarem, exactamente, da verdade dos anos e dos ninhos de LIBERDADE, que desde então nasceram.
As palavras servem para isso mesmo; sussurram, dizem, gritam e proclamam as náuseas do espaço que se estende, qual ribeira limpa e fresca, pelas décadas fora.
Há trinta e seis anos, inventou-se uma nova escolha, uma nova capacidade de ser pessoa.
Há trinta e seis anos, verteram-se tinteiros cheios de letras e de gestos que se uniram em desenhos concretos de ânsia aberta e de mãos alinhados em sonho. Como se fossem penedos de uma solidão que se desmoronava.
As cordas rebentaram de encontro aos cravos que se ergueram.
As ruas encheram-se de conversas, de beijos, de futuros e de peitos em chama.
Cantou-se a urgência de respirar e o brilho da revolta que acontecia.
Flores e armas abraçaram-se num dia imenso de glória e, juntas passearam os ventos novos, cheios de trovas e de sol.
Já passaram trinta e seis anos.
Dessa altura ficou a LIBERDADE inteira, povoando as almas inteiras, semeando as crenças inteiras que, também inteiras, se encorrilharam no tempo que tão depressa, correu.
Dessa altura, ficou a capacidade de decidirmos o que fazer com tantas coisas inteiras.
E o tempo, tão depressa, correu.
Os ideais de Abril ainda moram em certos recantos mas, as ideias não sobreviveram aos caprichos de turbulências sucessivas.
Ficámos, provavelmente, na metade do caminho, onde fantasticamente, as melhorias se processaram também pelas metades.
Dessa altura, temos hoje ainda um conjunto de insuficiências que não conseguimos, ainda, ultrapassar.
Aquela alegria que nos contagiou e invadiu, amareleceu, de tão mal tratada. Os últimos tempos não têm sido fáceis, relembro que a LIBERDADE de cada um acaba onde a dos outros começa.
Sobra-nos a esperança e a teimosia de tentarmos sempre chegar mais longe e de perpetuar ABRIL. Desistir desta LUTA é morrer de cobardia, mesmo quando, por vezes, nos parece, que não vale a pena.
Abram a janela!
Lá fora, já não há lobos nem corvos. Nem senhores sem nome, de cara tapada, na noite escura.
Não se ouvem recados de algemas, nem temores de notícias.
Olhem, vejam é ABRIL!
Eu continuo a acreditar em ABRIL, SEMPRE!
Na impossibilidade de estar presente nas comemorações, por motivos profissionais, um beijo e um abraço do tamanho do concelho,
POR CASTANHEIRA SEMPRE!
As mãos
ResponderEliminarCom mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.
Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.
E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.
De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.
Manuel Alegre, O Canto e as Armas, 1967